quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

as memórias e o natal

Estava sentado no sol e em cima da minha cadeira pousava todo o seu peso. Leve, muito leve. Na praça onde passou a mulher da minha vida e eu não a vi. Passou o cão que se ia afogando no gelado derretido do meu filho. O meu filho não estava. Era eu que comia o seu gelado derretido. O gelado só derreteu porque eu não vi passar a mulher da minha vida. As coisas só derretem porque não se vivem.

Nessa manhã de verão estavam agitados os chapéus de sol. Uma idosa caiu mesmo à minha frente em cima de uma casca de banana que não foi vivida. E por momentos pensei que aquela agitação atmosférica era um espelho da minha alma boémia. Não me levantei para a acudir e maior foi o esforço dos meus olhos em observar a corrida desenfreada dos transeuntes que para ela se dirigiam do que o esforço que teria feito se me levantasse e desse dois passos. Foi a minha forma de viver o momento. Por isso o conto desta forma.

...


Mais tarde com areia nos pés, um marido que já não o devia ser deixou a chave do seu carro que já não devia ser seu, à sua mulher que, definitivamente, não deveria ser sua, depois de discutir convictamente a discordância de opinião em relação à posição relativa do corta vento que também não deveria ser dele. Vento persistente. Deixou-a sozinha deitada na areia e ela, ali ficou até decidir não ficar mais. Levantou-se, enrolou o corta vento e dirigiu-se ao carro. No caminho, um dos suportes metálicos caiu no chão. Pensei levantar-me e avisar a mulher, que deveria ser divorciada, como eu. Não o fiz.

A entrada da cidade estava quente. Um pretexto para visitar um sitio fresco que me trouxesse memórias geladas de tempos escaldantes partilhados com aquela morna qualquer. Vista sobre a cidade e sua saída, ao fundo, do lado esquerdo, nesse trajecto ponte que sonhei um dia começar com ela. Não tenho de me lembrar das coisas boas. Só das más. É o mal que move a memória, que transforma o acontecimento-facto em acontecimento-fumo.

Hoje estou feliz. Os aviões voam. Os pássaros cagam e mijam ao mesmo tempo. As mulheres são fornicadas. Os homens choram. Porque não têm dois pénis. As mulheres riem, enquanto são fornicadas, e desejam esse segundo. Já não tenho avós nesta minha adolescência. Morreram há dez anos quando eu era criança. Gosto de ti. Longe e perto da mesma maneira. Riu e choro ao mesmo tempo, o meu coração faz tum-tum mais rápido do que é habitual e só me apetece ouvir canções de Amor!










Não considero escrever a isto que faço por aqui. Utilizo a pontuação porque tenho medo, as palavras porque não sei exprimir os meus sentimentos e a lógica como forma ludibriada da realidade. Sou um falhanço enquanto escrevo. E só escrevo na tentativa de racionalizar/minimizar os falhanços da minha vida. Deixo de escrever para deixar de falhar e deixo de falhar para deixar escrever. Fácil. Não vou negar que o mundo é complexo demais para mim e, em coerência, não deveria tentar exprimi-lo ou espreme-lo através de raciocínios escritos, através de mecanismos tão estéticos como são os jogos de palavras. Sou ansioso por natureza. As palavras são rápidas. Os sentimentos não. Demoram-se no caminho, para se assegurar do cumprimento do seu papel na hierarquia da importância das coisas. Se são importantes? Poderíamos viver sem eles? (e não vou fazer a mítica comparação idiota com os animais que supostamente não sentem). Não creio. São a unidade transversal a todas as dimensões do desenvolvimento da vida e da sua decadência, e em nenhum momento surgem de actos incutidos por terceiros ou por fenómenos sobrenaturais exteriores. São a unidade mais infinitamente íntima da nossa existência como ser individual e colectivo. O ser-sentimento.

Isto pode explicar porque não ouso dizer Amor quando não sinto, porque o que sinto é um fogo vulcânico por alguém com quem quero passar, hoje, o resto da minha vida.
Isto pode explicar porque detesto o silêncio e a distância, porque o que amo é sentimento e esse não se cala nunca.Isto pode explicar porque escrevo.
Algures em 2008

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